13 de mai. de 2010

Entrevista com Nilo Feijó Presidente da Associação Satélite-Prontidão

Entrevista com Nilo Feijó Presidente da Associação Satélite-Prontidão, sociedade negra centenária fundada em 1902 na cidade de Porto Alegre. A História do povo negro em Porto Alegre passa por aqui. Essa entrevista foi publicada no blog ennegritto.zip.net

Como nasceu a Associação Satélite Prontidão?

Nilo Feijó: O Satélite Prontidão na realidade é a união de duas associações. A primeira delas é a Associação Satélite Portoalegrense (ASPA), fundada em 20 de abril de 1902. O interessante é saber o porquê dessa segunda sociedade. A primeira foi criada com a intenção das famílias negras poderem conversar trocar idéias, discutir a parte cultural, além do lazer e do entretenimento. Também tinha o foco voltado para a educação. Porque se repararmos a ASP foi fundada apenas 14 anos após a abolição da escravatura. Pegou um período em que o país passava por um processo de crescimento industrial, e o negro era analfabeto por imposição. Não tinha como competir em um mercado como esse. Então as primeiras sociedades já tinham a idéia de investir nessa questão da educação por ver que o negro estava em desvantagem. Não só o Prontidão, o próprio Floresta Aurora, fundado em 1872 já tinha essa missão de trazer para a comunidade algo além de entretenimento. E para mim era também era um centro de resistência para a comunidade, era uma forma de evoluir em um contexto totalmente negativo. Pouco antes da abolição foi decretada uma lei que dizia que quem tinha uma terra, teria o direito de tê-la como sua. Justo, pouco antes da abolição, uma lei que impede o negro de ter seu chão, e vemos até hoje as brigas pelos quilombos.

E a segunda sociedade?

NF: A história da segunda sociedade veio um pouco adiante. Em uma noite de carnaval, quatro ou cinco jovens resolveram fazer uma fantasia e foram em um baile do Satélite na Cidade Baixa. Nem todos tinham dinheiro para pagar o ingresso. Então resolveram fazer uma fila indiana e romperam o salão gritando: “Pron-pron-prontidão! Pron-pron-prontidão!” Há quem pense que era prontidão de alerta, mas na época a gíria para ‘pobre’ era ‘pronto’. Quando alguém não tinha dinheiro dizíamos: “fulano está pronto”.Essa idéia acabou criando corpo, muitas famílias gostaram do gesto dos rapazes. Eles ganharam a festa! E resolveram criar outra sociedade chamada Sociedade Carnavalesca Prontidão, em 1º de março de 1925. Em 1956 essas duas sociedades resolveram se unir.

Por quê? Como aconteceu?

NF: Porque o que aconteceu com a ASPA? O bloco dos rapazes representava juventude, era a força jovem. A ASPA era uma pessoal de mais idade, e a juventude passou a freqüentar o Prontidão. O Satélite ficou com as festas mais tradicionais, os jantares, bailes do ano e em 1956 resolveram se juntar.

E onde funcionava?
NF: Quando o Satélite tinha atividades conseguiu comprar na Rua Olavo Bilac um terreno pequeno, mas não conseguiu fazer a sede. Quando ouve a fusão, o Prontidão, que nunca tinha tido sede lembrou-se do terreno. Eles o venderam e compraram o terreno da Aparício Borges, 288. Onde é até hoje. Foi quando se consolidou a Associação Satélite Prontidão (ASP).

Como eram visto os grupos sociais negros?

NF: Os grupos sociais negros possuem uma importância histórica na sociedade brasileira. Certamente extraíram dos quilombos a coragem e a compreensão que também poderiam e deveriam construir seus coletivos. Entendendo que a sociedade branca e dominadora não lhes concederia espaço, passaram a interagir com as suas comunidades, empenhando-se na formação de seus núcleos sociais, muitos com atividade há mais de cem anos, como a ASP.Eu sempre digo que a sociedade negra é diferente da sociedade branca por vir de outro contexto, a escravidão. Muita gente afirma que o Floresta Aurora foi criado, os negros forros o criaram porque quando os negros morriam eram atirados em valas comuns ou em um campo qualquer. Imagina que tratamento que se dava lá na origem (África) a uma pessoa que morria. Vemos isso inclusive pelos ritos que se professam dentro das religiões africanas quando morre alguém do grupo. Sabemos que é um ritual todo preparado. Imagine essa gente vendo seus negros atirados, seus irmãos atirados.

Quais eram as atividades no início?

NF: Uma das primeiras atividades e compromissos das sociedades era de comprar terrenos para poder enterrar seus mortos. Depois veio a necessidade de educar. Sempre foi feito porque havia uma carência a ser suprida. Por isso a sociedade negra não foi criada apenas para o lazer e entretenimento, era um centro de resistência, um núcleo cultural, político inclusive, para poder dar assistência. Outra questão que falo sempre é a da saúde. Imagina como era a saúde da sociedade negra antes e logo após a escravidão quando até para os brancos era complicado. Se não fossem os tratamentos trazidos de berço, das infusões, dos chás, não tinha nada. E mesmo quando se tratava de uma epidemia, como a nova gripe agora, levava-se tempo para saber o que podia ser e como minimizar esse mal. Até isso morriam milhares.

As associações são unidas? Trabalham juntas?

NF: Hoje o pessoal está trabalhando na Associação dos Clubes Negros, que envolve todos os clubes do Brasil, eu estive em Sabará onde 28 entidades de várias partes do país também estavam, porque o governo tem dado um apoio muito grande, tem entendido essa idéia de que o clube negro é um patrimônio histórico que deve ser preservado.

Como era a divisão das associações?

NF: Minha mãe nasceu em 1915 em Caçapava e estudou em Cachoeira. Ela contava que havia ruas na época em que negro não podia passar, quem dirá participar de um clube. Certamente, vários problemas devem ter acontecido de discriminação. Como no futebol. Muitos criticam o Grêmio, mas nenhum clube aceitava negros. Por isso foram obrigados a criar a Liga da Canela Preta para poder participar. Até que os brancos perceberam que os negros jogavam bem e abriram espaço. Mas a divisão era muito clara para os dois lados.

Quando se deu a mudança?

NF: Com o tempo a sociedade branca se abriu e causou um problema para a sociedade negra porque os clubes sociais negros começaram a ter dificuldade em conquistar a participação do jovem. Alguns jovens negros começaram a freqüentar boas escolas, não a maioria, mas uma parcela conseguiu estudar, ir para uma faculdade e acabaram participando de outras instituições. Normalmente as sociedades negras foram construídas com problemas de edificação, sem um acompanhamento técnico e acabaram ficando um tanto acanhadas. Isso causava um sentimento de baixa auto-estima, o jovem começou a ir no Sogipa, no União e começou a olhar esses clubes e comparar com a sociedade dele que não era igual. Por isso se buscou apoio para que os grupos negros fossem se qualificando. Nós achamos até que temos uma questão a mais. Geralmente o que move as sociedades? Entretenimento, esporte... Nós, não. Nós temos outras missões como a cultural e a educacional; não é, mas devia ser política também. Por isso temos poucos nomes na política. Recordo-me quando entrei para o Prontidão de duas questões estatutárias interessantes. Não se discutia religião e nem política. Isso era estatutário! O que é um absurdo, afinal política faz parte de nossas vidas e a religião te dá um norte!

Quando o senhor entrou para o Satélite Prontidão? Sempre foi envolvido nessas causas?

NF: Eu tinha 20 anos e entrei na realidade para três sociedades. O Clube Náutico Marcílio Dias. Uma das maiores idéias que a comunidade negra teve foi fundar os clubes náuticos, que tiveram seu período áureo. Ganharam a simpatia de outros clubes náuticos que deram uma frota ao clube, mas a comunidade não conseguiu mantê-lo e ele terminou. Além do Marcílio Dias, entrei também para o Floresta Aurora e o Prontidão, ao mesmo tempo, em 1958, e nunca mais abandonei! O Marcílio Dias infelizmente terminou o Floresta Aurora eu só não freqüento mais por causa das atividades aqui no Prontidão. Faço o que posso, pois acredito que se não for assim a coisa não evolui.

O senhor já tinha idéia do que queria ao entrar para as associações ou o negro não tinha muita opção?

NF: Na idade que eu tinha eu não tinha o esclarecimento que tenho hoje, mas entrei também porque não tínhamos opção. Sempre tive espírito construtivo. Não consigo chegar a um lugar e ficar ali parado, sem operar. Sempre quero me meter e fazer alguma coisa para ajudar, e esse é meu mal porque quando eu via estava no meio da diretoria.

Há quantos anos o senhor está na diretoria do ASP?

NF: Aqui no Prontidão estou há muitos anos, já fui vice-presidente de dois ou três presidentes, até que não pude fugir mais. Dessa última vez já estou na presidência há alguns anos, já fui reeleito duas vezes. Tive um período de dois anos, fui reeleito por mais dois e agora mais quatro anos. Já fui diretor cultural também. Sempre gostei muito disso porque acho que se alguém não faz, não acontece. Pessoas com a mesma idéia e vontade têm de se juntar.

No RS não somos maioria, numericamente falando. O senhor acha que isso cria no negro gaúcho uma identidade diferente?

NF: Eu acho que no RS, nós tivemos inúmeros grupos negros, ao mesmo tempo, só em Porto Alegre. Nossa comunidade tem carregado sua bandeira com muita força. Podemos ilustrar isso com o 20 de novembro, uma idéia que nasceu aqui. É interessante porque aqui não somos maioria, somos uma minoria que, em determinado momento, tornou-se até um pouco privilegiada. Quem sabe, até por ser minoria a gente se juntava mais. Há uma diferença enorme se comparamos com a Bahia, por exemplo. Lá é o berço da negritude, 80% da população é negra, mas acho que já se contribuiu e produziu muito aqui no RS. No Rio de Janeiro também. Lá a sociedade se mesclou se misturou muito cedo, com predominância do português. Isso fez com que o carioca fosse mais diferenciado. Lá temos muitas cabeças importantes. São Paulo também, mas acho que aqui temos um diferencial. Se procurarmos os registros de grupos negros no RJ não temos a quantidade que temos aqui no RS. Veja a quantidade de casas de religião que temos aqui no RS, mais do que na Bahia!

Como o jovem de hoje vê os grupos negros?
NF: Tem uma questão que também é primordial que são as desigualdades. Esse é um dos maiores problemas do nosso país e isso é meta do governo. O governo sabe! Eu sempre comparo o Brasil como uma formação de várias etnias, uma corrente que é o país por inteiro. Se uma etnia, que é um elo dessa corrente, não está legal, a corrente toda não está legal. O país hoje tem consciência disso. Porém, quem foi que perdeu 400 anos? O negro! Hoje somos obrigados a recorrer a uma série de artifícios para tentar amenizar esse problema, esse atraso. As cotas, muitos são contra, mas isso nos é devido. Também não gostaríamos de recorrer a esse tipo de coisa, mas quem está em cima quer continuar lá. O famoso status quo... Sempre se quer o mesmo ou mais ainda. Hoje estamos recorrendo o poder. Nos nunca o tivemos! Queremos competir. Por isso acho que a juventude está mais atenta porque ela está sofrendo a conseqüência disso. Uma vez fiz parte de uma empresa que fez uma seleção. Havia seis moças e cinco vagas. Um das que concorriam às vagas era negra, e foi a única que ficou de fora, apesar de ser a mais qualificada. Perguntei para quem tinha feito o processo de seleção o porquê e ele me respondeu: eu pensei que ela podia causar problema no futuro. A única maneira de mudar essa situação é nos qualificando, estudando. Tendo em mente que para a sociedade negra é muito mais difícil.

Aqui na ASP existe um curso pré-vestibular diferenciado, não é? Como funciona?

NF: Sim, o criamos há 14 anos. Não poderíamos e nem queríamos fazer um curso só para negros. Isso também seria discriminação. Temos no curso muitos brancos que também têm problemas, carências. E aqui nós concorremos com a falta de dinheiro, condução, as pessoas trabalham oito horas e depois têm de vir direto para cá e ficar mais algumas horas aqui com fome. Iniciamos com 50, 55 alunos e no final o pessoal vai desistindo. Quem tem um pouco mais acaba indo mais longe. Aqui no curso os professores não ganham nada, participam para ajudar e passar o que sabem.

Quanto custa para os alunos?

NF: R$15 a matrícula e R$25 a mensalidade. No inicio era gratuito, mas com o tempo vimos que gratuito não era bom. Então estipulamos esses valores por entendermos que quando damos e não cobramos o curso não é valorizado. Esse dinheiro usamos para um lanche que fazemos para os alunos, material necessário para eles mesmos. A Associação não usufrui de nada.

A maioria dos alunos é negra?
NF: Aqui a comunidade procura, mas poucos vão adiante. Além do que já citei, eles enfrentam também o desestímulo familiar, por incrível que pareça! Há famílias que dizem: “Poxa negão para que estudar? Se chegar agora em uma obra e tem emprego mais fácil...” Ate pode ter. Eu entreguei jornal e não acho que seja demérito. Que trabalhe, mas não se pode esquecer o outro lado. Que ele pode crescer e vencer. Isso mostra que nesse bloco dos necessitados nós estamos abaixo também.

Qual o resultado desse trabalho?

NF: Por aqui já passaram mais de 700 pessoas e 30 já entraram na UFRGS. Muitos podem dizer: poxa, só? Em 14 anos? Mas é importante!Temos um médico que estudou aqui. Um negro que concluiu medicina foi orador da turma na formatura e era o único negro que tinha na turma. Eu estava lá para ver a cerimônia.

E o que significa a Associação Satélite Prontidão hoje?

NF: Hoje o Satélite é importante pelo tempo. Ele é uma jóia, como aquelas que guardamos por anos com muito carinho pela história e envolvimento. É o Prontidão das raízes, pela maneira como foi construído, pela vontade que tem de produzir mais ainda. Sem as desigualdades não precisaríamos de políticas públicas. Somos todos brasileiros e deveríamos usufruir dos mesmos direitos, sabemos que essa condição é utópica para a comunidade negra. Medidas compensatórias e reparatórias nos são devidas não só pelos resultados produzidos pelos longos anos de cerceamento da nossa liberdade e direitos fundamentais, mas muito mais pelos reflexos que essa grande ferida ainda hoje produz, entretanto, não estamos apenas querendo servir e produzir para a sociedade negra, mas à sociedade por inteiro. Fazendo isso, todas as associações, negras ou não-negras, trarão um ganho para o país.

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